Entrevista ao Poeta Nuno Higino

Não é todos os dias que conhecemos alguém que tenha simultaneamente a profundidade e a leveza de Nuno Higino.

Nascido a 16 de Julho em Felgueiras, em ano omisso neste artigo, porque o poeta é sempre intemporal, Nuno Higino tem um percurso singular e inspirador. Foi pároco no Marco de Canaveses durante 13 anos, entre 1988 e 2001, época em que se deu a construção da igreja de Santa Maria, com projeto do Arquitecto Álvaro Siza Vieira com quem Nuno viria a traçar amizade e a colaborar em alguns livros.

Em 2001 Nuno foi estudar Filosofia e em 2003 iniciou o Doutoramento na Faculdade de Filosofia da Universidade Complutense de Madrid, que viria a concluir em 2007. O tema de investigação foi a interpretação dos desenhos de Álvaro Siza com base na filosofia de Jacques Derrida. Em 2005 Nuno renunciou ao sacerdócio, deixando assim a vida de pároco para trás e iniciando uma nova etapa profissional e pessoal.  

Atualmente é professor de História da Arte e o responsável pela Editora Letras & Coisas, tendo diversas obras publicadas em poesia, ensaio e literatura infanto-juvenil.

 

A sua escrita é duma riqueza doce que nos transporta para as “águas de infância”, um espaço sem tempo, onde simplesmente habita o ser, que nos remete para as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen:

 

“O poeta é igual ao jardim das estátuas

Ao perfume do Verão que se perde no vento

Veio sem que os outros o vissem

E as suas palavras devoraram o tempo.”

 

Nuno é duma simpatia imensa, que irradia alegria e serenidade. As pessoas sentem-se naturalmente bem na sua presença e o autor está constantemente envolvido em todo o tipo de actividades artísticas e culturais, revelando uma notória paixão pelo aprimoramento e divulgação da cultura e das artes.

 

Uma das minhas passagens favoritas dos seus livros – e que, a meu ver, descreve na totalidade este ofício de traduzir a vida em palavras – pertence a A Sombra do Gafanhoto:

 

“- Achas que o meu canto tem utilidade aqui no meio deste deserto?

– Claro que tem. Quando os homens ouvem o teu canto, ficam a saber que o deserto tem vida.”


Vamos então escutar Nuno Higino em primeira mão:

 

1 – Como é que nasceu a tua paixão pela escrita?

Não sei muito bem. Não foi uma decisão consciente e racional, do género: ‘a partir de agora vou começar a escrever’… Foi uma água que foi tomando conta de mim sem eu perceber que estava a ficar molhado. Com 12 ou 13 anos escrevi a letra para uma música de um colega de Seminário. Gostava de fazer redações para a disciplina de português. Mais tarde, já nas fronteiras da juventude, recordo-me de começar a escrever poesia com alguma regularidade. Até quase aos 40 anos não pensei publicar (ou, pelo menos, não pensei nisso seriamente, apenas me ocorreu de forma passageira uma ou outra vez). Um dia, surgiu uma oportunidade de publicar… e avancei. Depois a água de que falava, começou a deixar-me ensopado na escrita e nunca mais me libertei dessa humidade boa.

 

2 – O que te fascina na escrita para crianças?

A possibilidade de entrar no imaginário da infância e auscultar o que por lá se passa. É um exercício quase impossível, mas a literatura, com os seus instrumentos de ficção, permite ter a esperança de cumprir essa tarefa. É necessária uma atenção permanente ao mundo, imaginário e linguagem das crianças: anotar como falam e sobre o que falam. A sua linguagem directa, muitas vezes sem o colchão da sintaxe e do sentido, é fundamental para almejar uma escrita que as interesse.


3 – Quais são os teus escritores favoritos? E os que mais te influenciaram ou inspiraram?

A Sophia em primeiríssimo lugar. Até de mais… Durante muito tempo, e porventura ainda hoje, se nota muito a sua influência sobre a minha escrita. Quem escreve tem sempre uma paternidade ou maternidade literárias, quer queira ou não. Mas tenho muitos escritores favoritos que acompanharam as diversas fases da minha vida: houve fases duma grande proximidade ao Torga, depois aos realistas, depois ao Eugénio de Andrade e ao Ruy Belo, depois ao Herberto, depois ao Lobo Antunes, depois aos sul-americanos (Juan Rulfo, Gabriel García Marquez e quase todos os poetas brasileiros). Depois, os que me vêm parar às mãos. Não leio muito, nem sou muito criterioso nas minhas escolhas…


4 – Qual é o papel da escrita, da literatura ou da arte no bem-estar do ser humano?

É um pouco difícil dar uma resposta genérica e universal. Duvido que uma pessoa sem os bens essenciais de saúde, educação, habitação, etc. tenha disponibilidade de espírito para a literatura e as artes. Julgo, no entanto, que em relação ao mundo que é o meu, a literatura e as artes terão um papel fundamental no bem estar cultural da sociedade. Depende muito do modo como essas realidades entram (ou não) no contexto vital das pessoas e das sociedades. Eu próprio me pergunto: é possível viver sem a arte e a literatura? Aparentemente, para algumas pessoas, sim. Para mim, não…


5 – Como surgiu a Letras & Coisas e qual o seu principal objetivo?

A L&C surgiu da necessidade de publicar os meus livros, evitando andar a mendigar de Editora em Editora… Isto quanto às Letras, porque depois, há as Coisas. Estas têm a ver com a arte e o design. A L&C produz e comercializa objectos de arte e tem o privilégio de trabalhar com autores como Siza Vieira, José Rodrigues, Alberto Péssimo e mais uns tantos. A concepção e produção destes objectos é o que me dá mais prazer.


6 – O que significa cultura para ti? Qual o seu papel no legado de um povo?

A cultura é um magma que acompanha a acção humana e a acrescenta pela sua capacidade de crivar e perdurar. A cultura é um afinador do espírito que o torna disponível e sensível para colher e reter aquilo que o liga a uma corrente que vem de muito longe e o torna herdeiro, no sentido pleno da herança. A cultura é ‘o tudo’ de qualquer comunidade humana. Fora da cultura não há comunidade, pois é a cultura que coloca os cimentos de ligação das pessoas umas às outras. Intemporalmente!


7 – De que maneiras podemos fomentar a reconexão das pessoas com a cultura no contexto português da atualidade?

Apesar da tendência de transformar a cultura num facto positivo (que a sociologia do século XIX explica bem, sobretudo a francesa) eu penso que as pessoas estão necessariamente ligadas à cultura, pois a cultura é o que lhes dá origem. A cultura, como a linguagem (que também é cultura), não é um facto que se apõe à actividade humana. Não. A cultura é o que está na origem. Vivemos na cultura e da cultura. E, quando isso não acontece, ficamos órfãos, desenraizados, perdidos numa floresta de enganos. A ‘era do vazio’ que alguns dizem que vivemos significa precisamente isso: a desvinculação. A ‘reconexão’ à cultura significa, de facto, um reposicionamento. Para que sejamos seres ‘bem situados’ (segundo o verso de Daniel Faria) é necessário cuidar dos vínculos que nos ligam à cultura; é necessário estar ancorados nela, vencendo a espuma niilista dos tempos de vazio.


8 – De que forma a literatura está ligada à espiritualidade?

A literatura está necessariamente ligada à espiritualidade, pois a acção literária é uma acção do espírito. Não há literatura fora duma espiritualidade, seja ela qual for. Vejamos: a literatura vive da palavra e, se a palavra não tem um compromisso com o espírito, não é nada, é mero falatório. Aquilo que distingue a palavra literária da palavra não-literária é essa profunda ligação ao espírito. A palavra da literatura não é palavra que o vento leva. É palavra enraizada. E essa raiz só encontra terreno e alimento no espírito.

 

9 – O que significa para ti espiritualidade?

É a vida do espírito. Com isto não estou a recriar nenhum tipo de dualismo, tão típico da nossa cultura. A distinção corpo/espírito é meramente instrumental. Não há corpo sem espírito nem espírito sem corpo. Não há, no meu entender, um espírito puro. Eu sou cristão e acredito no espírito encarnado. Jesus ressuscitado apresenta-se corporalmente (não um puro espírito). Um corpo diferente, é certo, do corpo historicamente conotado, mas um corpo que pode ser tocado… A espiritualidade é a nossa vida. Quando dou um pontapé numa pedra, não é só o corpo que dói. Quando fico enredado num nó do espírito, o corpo também padece. A espiritualidade é o modo como me situo na vida: o modo como avanço ou recuo, o modo como coloco os pés no chão, o modo como uso as palavras, o modo como olho a realidade que me envolve. A espiritualidade é a minha vida, o que faço com ela e o modo como a conto aos outros.

 

10 – Como é que as pessoas podem estar mais atentas e ligadas ao “espírito”? Quais os “benefícios” que essa conexão traz?

Sempre estamos ligados ao espírito, ainda que essa ligação possa sofrer danos, às vezes irreparáveis. Como ficou dito na resposta anterior, a espiritualidade é a totalidade da vida duma pessoa.

 

 

Obra de Nuno Higino

Ensaio

1. O Terceiro Anjo. José Rodrigues: anjos em desconstrução, Campo das Letras, 2007;

2. Álvaro Siza: Desenhar a hospitalidade, Casa da Arquitectura, 2010;

3. Álvaro Siza. Anotações à margem, Nota de Rodapé, 2015;

4. Assim e assado. Escritos sobre estética da arte, Letras e Coisas, 2018.

Poesia

1. No silêncio da terra, Campo das Letras, 2000;

2. Onde correm as águas, Campo das Letras, 2003;

3. Talvez Deus se tenha enganado, Letras e Coisas, 2004;

4. O animal eólico do corpo, Letras e Coisas, 2007; Tradução para castelhano pela Ed. Amargord, Madrid, 2014;

5. Mãe. E leva os filhos nos olhos como se os levasse pela mão, desenhos de Alberto Péssimo, Letras e Coisas, 2011;

6. Rios sedentos, Letras e Coisas, 2014;

7. A mão do pai, desenhos de Isabel Amaral, Letras e Coisas, 2016;

8. O vazio do mundo, Letras e Coisas, 2017.

Literatura infanto-juvenil

1. A mais alta estrela. Sete histórias de Natal, ilustrações de José Maia, Cenateca, 1998;

2. A libelinha que tocava flauta, ilustrações de José Rodrigues, Associação Convento de S. Payo, 1999;

3. A rainha do país dos Frutos, ilustrações de José Emídio, Cenateca, 2000;

4. O menino que namorava paisagens e outros poemas, ilustrações de José Emídio, Campo das Letras, 2001;

5. A anja de hálito azul, ilustrações de José Rodrigues, Cenateca, 2002;

6. O Senhor Outono e o Lagarto amigo das palavras, ilustrações de
Márcia Luças, Campo das Letras, 2002;

7. Todos os cavalos e mais sete (poesia), ilustrações de Álvaro Siza, Cenateca, 2003; Reeditado por Nota de Rodapé em 2015.

8. O crescer das árvores, ilustrações de José Emídio, Campo das
Letras, 2003;

9. Onde dormem os pássaros?, ilustrações de Armanda Passos, Caminho, 2006;

10. A maçã vermelha. Viagem à infância de Sophia de Mello B.
Andresen, ilustrações de José Emídio, Letras e Coisas, 2007;

11. O meu primeiro livro de viagens, ilustrações de José Rodrigues, Letras e Coisas, 2008.

12. Versos Diversos (poesia), ilustrações de Ana de Castro, Trinta por uma Linha, 2008;

13. O cavalo que engoliu o sol. Histórias da vida de S. Paulo, ilustrações
de Emerenciano, Letras e Coisas, 2008;

14. A sombra do gafanhoto. Como João Baptista deixou de comer
gafanhotos, ilustrações de José Emídio, Letras e Coisas, 2010;

15. A cerejeira que floriu em Maio. Vida e martírio de Santa Quitéria,
ilustrações de José Emídio, Letras e Coisas, 2010;

16. A noite das três luas. Nuno Álvares Pereira, ilustrações de José
Emídio, Editoral Paulinas, 2010;

17. O peixe dourado. História de S. Pedro pescador de homens,
ilustrações de José Maia, Paróquia de Torrados, 2011;

18. O Jardim de Helena, ilustrações de José Rodrigues, Letras e Coisas, 2011;

19. Criança todos os dias (poesia), ilustrações de José Emídio, Letras e Coisas, 2011;

20. Daqui e do mar, eu vou-te contar (poesia), ilustrações de Eduarda
Leitão, Letras e Coisas, 2013;

21. O casamento de Pedro e Inês de Castro, ilustrações de Alberto
Péssimo, Letras e Coisas, 2013;

22. Histórias de Natal, ilustrações de Paula Gaspar, Letras e Coisas, 2013;

23. A trote e a galope. Antologia de poesia para a infância, gravuras de
Alberto Péssimo, Letras e Coisas, 2017;

24. Águas de infância, ilustrações de Joana Antunes, Letras e Coisas, 2019

25. O Livro de Benício, ilustrações de Kassandra Júlio, Letras e Coisas, 2021

 

 

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